sexta-feira, 3 de julho de 2009

As pessoas são frases, orações, períodos, poemas


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Prefácio do livro Um dia, o trem
de Fernando Fábio Fiorese Furtado
São Paulo: Nankin; Juiz de Fora: Funalta, 2008



Um homem resvala à flor dos trilhos nos cenários ferroviários de sua infância. Acesas estão as lanternas, vejam as cabines que passam, lá vem o guarda. Haja apitos. Em meio a essas figurações urbanas, a mão paterna e o brinquedo antigo anunciam as formas e os corpos que formatam silêncios e futuros textos. Movido por um jeito de pontuar, o lápis fabrica entonações; mexe na respiração de quem lê. O leitor sabe que tudo isso acontece quando ainda não estamos possuídos por aquela máscara a qual os adultos chamam de experiência. Sim, Murilo: as pessoas são frases, fases...

Nessa escritura do pretérito, o poeta dialoga com as bagagens do menino que se passa “a limpo” quando lido no presente: “o menino que foi o pai e nele avulta”, como na primeira estrofe de UM DIA, O TREM - livro do poeta, ensaísta e professor Fernando Fábio Fiorese Furtado, autor do cultuado Corpo Portátil (2002). Nestas paisagens de letra e ferro, são tecidas a fogo e som as ”ficções da infância” com as quais suportamos – seja com a fala, seja com os ombros – o mundo que nos comporta. É preciso muita infância para nutrir um pai; é imperativo que haja no texto do pai a oração do menino.

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Uma boa dose de oralidade marítima ecoa destas orações e destes versos de ritmos e desvios ferroviários. O poeta sabe que “trem é coisa de se medir com mar”. Baseado nessa medida, o homem circula com a lanterna que adia o breu e sinaliza a morte ao “passar o menino a limpo e a luto”. Seu apito guarda e celebra a vida com “aquela demasia de ferro e fuga” que o país do ouro, o uni-verso do outro contém, o país da infância ostenta. Às vezes esbanja. É, pois, esse universo rubricado pelas impressões do menino – todo lacunas, emendas, erratas – que o poeta devolve, via linguagem, para quem lê como um luxo a infância em qualquer período da vida.

Nessa viagem pela infância ecoa a respiração do menino. Ouvem-se os ritmos repetidos da ferrovia e a sua música agitada. Ecoa também, além desse trem que ora, os ritmos do serrote herdados do pai e as notas do piano, no caos, tocado pela mãe tonta de tanta melodia. No ritmo do detetive que caça e guarda, o leitor habita o vagão da transgressão. Habita também o espaço da deriva que a linguagem da poesia aciona, e ganha um mundo novinho em folha, em texto, em corpo como templo da escritura. Sim senhor leitor, as pessoas são templos da escritura. São poemas que andam. São.