quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Malabaristas

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Se Na esquina – o Cd de João Bosco lançado em 2000 – sugeria o espaço público como signo que celebra a existência na sua dimensão comunitária, o atual trabalho do artista continua ratificando esse elemento “comum”. Isso pode ser aferido já na pluralidade do seu título: Os malabaristas do sinal vermelho (2003).

Enquanto Na esquina ouvimos reagge, canções mais “palatáveis” e versões de clássicos populares como “Sibonei”, o cd Os malabaristas... aposta no que sempre norteou a profícua trajetória de João Bosco: um denso intertexto entre a riqueza dos ritmos, as melodias sofisticadas e a lapidação das letras.

Diante da impossibilidade de cantar e inscrever a totalidade num mundo pós-11 de setembro, João e Francisco Bosco optam por um olhar metonímico por meio do qual dão visibilidade aos que param no sinal vermelho: aqueles que caminham pela lateral, pela margem; aqueles que ocupam o palco – o centro da rua – quando o sinal fecha.

O Cd comemora trinta anos de carreira de João. É a terceira obra em parceria com seu filho, o poeta e ensaísta Francisco Bosco. Trata-se de um trabalho radical, no sentido de não fazer concessão a modismos. Estamos diante de um denso momento da MPB neste início de milênio.

Poucos trabalhos contemporâneos documentam com tamanha maestria o imaginário do seu tempo como Os malabaristas... O cd resgata os tempos áureos da música brasileira feita nos anos 70, quando a melodia e a letra das canções pareciam ter atingido aquela zona tensa e dialógica, entre som e sentido, de que fala Valéry, e que caracteriza as poéticas da modernidade.

O Cd é de uma contemporaneidade contundente. A canção de título homônimo que o abre já anuncia a que ele se destina: falar deste tempo. E para dizer do presente, João e Francisco entoam os temas que nos circundam: a narrativa da cidade, a identidade dos excluídos, suas histórias moventes, deslocadas. Sem se preocupar com paliativos nem roteiros midiáticos, e de olho no bruta treva do presente, a dupla entoa “Os anjos” que “partem armados em bondes do mal”, incluindo aí os que “rezam” e os que “matam”.

Não é à toa que o Coral da Escola de Música da Rocinha canta na primeira faixa os seguintes versos: “Daqui de cima da laje/ Se vê a cidade/ Como quem vê por um vidro/ O que escapa da mão”. É uma abertura deslumbrante para os que se equilibram, jogando habilmente com as circunstâncias – os malabaristas do sinal, da vida, do terreiro (“Terreiro de Jesus” já nasceu clássica).

Esse equilíbrio é também audível na vitalidade da voz de Seu Jorge em “Cidade Cinema”, onde há um “mapa tatuado na sola dos pés”. Seu Jorge carrega na voz a densidade e a velocidade urbanas, assim como João transporta no seu canto a tradição do lirismo lusitano com um afro lamento árabe. Em algumas faixas parece ecoar a celebração meio melancólica e visceral do canto de Clementina de Jesus. Em outras, as lembranças dos violeiros do sertão nordestino ou um lamento mineiro ecoando pelo mundo.

Essa melancolia é audível, por exemplo, na belíssima canção “Moral da História”. Nela o verso “melancolia das estrelas” é entoado com tamanha densidade, a ponto de sugerir o quanto de dor pode comportar a visão dos astros num cenário onde as luzes do Vidigal e da Rocinha anunciam a treva que acoberta Deus e o Diabo na disputa pela terra do sal.

João canta o afeto e o terror. Celebra o lamento e a fé, a falta de arrependimento e o peso do tempo, utilizando-se de todos os timbres e tons do seu vasto arquivo musical. Francisco não deixa por menos: neste terceiro trabalho em parceria com o pai, é visível o seu equilíbrio como malabarista da palavra.